A&R de Portugal - Qual é o ponto de situação em relação às
doenças emergentes que se têm tornado graves ameaças a populações de anfíbios um pouco por todo o mundo?
Gonçalo M. Rosa - Cerca de um terço de todas as espécies de anfíbios estão ameaçadas de
extinção e muitas outras enfrentam
graves declínios populacionais. A perda de habitat é a principal causa deste declínio, mas há uma preocupação crescente em torno da ameaça
representada pelas doenças
infecciosas.
Alguns agentes
infecciosos têm causado doenças estando estas associadas a
declínios e extinções um pouco por todo o mundo. Neste campo destacam-se as
quitridiomicoses e as ranaviroses como as enfermidades de maior impacto.
Outras doenças podem também ser responsáveis por mortalidades massivas em
comunidades de anfíbios, embora o conhecimento global sobre os patógenos e sua
dinâmica seja ainda escasso: é o caso, por exemplo, do Amphibiocystidium (agente causador de dermocistidiose),
da Aeromonas hydrophila (uma bactéria
causadora de "Red-leg disease", doença
da perna vermelha), e outras bactérias da família Chlamydiaceae capazes de
infetar anuros e caudatas.
A quitridiomicose é
uma doença infeciosa causada por fungos microscópicos do
género Batrachochytrium, e a primeira intimamente ligada a declínios e extinções de centenas de espécies de anfíbios. É a doença que mais atenção tem gerado e, até à
data, são conhecidos dois agentes capazes de conduzir à infeção: o
quitrídio-dos-anfíbios (Batrachochytrium
dendrobatidis, Bd), e o
recentemente descrito, quitrídio-das-salamandras (B. salamandrivorans, Bs). A grande
mortalidade ocorre nos primeiros dias após a metamorfose, quando os indivíduos
terminam o estádio larvar e dão início a uma nova fase do ciclo de vida em ambiente
terrestre... acabando a maioria por não chegar a sair das margens dos charcos.
O fungo instalado na pele, afecta a respiração cutânea destes anfíbios bem como
o equilíbrio hídrico, podendo eventualmente levar a uma paragem cardíaca.
Segundo a IUCN,
este fungo tem o potencial de causar
declínios populacionais massivos numa questão de semanas, tendo conduzido já a extinções,
não só de populações mas também de espécies, com o primeiro caso de infeção com
Bd na Europa a ser registado em 1997
na serra de Guadarrama, em Espanha.
Em
Portugal, a presença de Bd foi pela
primeira vez detectada em 2005. No entanto, os primeiros sinais do impacto do
fungo só foram registados no ano de 2009 na Serra da Estrela, onde centenas de
sapos-parteiro-comuns (Alytes
obstetricans) recém metamorfoseados foram encontrados mortos à beira de uma
lagoa.
Ainda na Serra da Estrela, foi detectado um ranavírus na população de
lagartixa-da-montanha (Iberolacerta
monticola). O ranavírus parece
ter evoluído a partir de um vírus de peixes que, posteriormente, se tornou
capaz de infectar anfíbios e répteis. Este patogénio é agente causador de
ranavirose, cujos sintomas passam por vezes por um
avermelhamento da pele, em particular sobre as patas traseiras. Outros dois indícios são a ocorrência de hemorragias interna e ulcerações na pele, podendo os animais sofrer uma ou ambas.
Alguns estudos indicam que estirpes do vírus encontradas na Europa poderão estar relacionadas com o mesmo vírus
encontrado em rãs e salamandras norte-americanas,
podendo estas ter sido introduzidas com anfíbios
ou peixe de água doce não-nativos
importados. Este é o caso de populações de rã-touro-americana
(Lithobates catesbeianus)
introduzidas em França e Bélgica, onde este agente infecioso se encontra
presente.
Sapo-parteiro-comum (Alytes obstetricans) morto, vitima de quitridio-dos-anfíbios durante a fase final do processo de metamorfose. (Gonçalo M. Rosa - Serra da Estrela) |
A&R de Portugal - E que
cenário encontram as populações em Portugal?
Gonçalo M. Rosa - O estudo de doenças em anfíbios é uma área
relativamente recente, particularmente em Portugal, onde poucos são os registos
existentes sobre os seus impactos em populações selvagens.
No ano
de ‘98, centenas tritões-marmoreados (Triturus
marmoratus) foram encontrados mortos numa lagoa do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Os
indivíduos apresentavam os sinais típicos de uma ranavirose (com lesões na pele
e hemorragias espalhadas pelo corpo), embora a confirmação tenha surgido apenas
em 2008, com o auxílio de métodos moleculares.
Quanto
ao quitrídio-dos-anfíbios (Bd), como
referido anteriormente, a sua presença fez-se notar com grande impacto na Serra
da Estrela, deixando para trás um rasto de morte e um vazio enorme na magnifica
paisagem de montanha. De acordo com registos e relatórios
relativos à década de 90, o sapo-parteiro-comum era uma das espécies de anfíbios
mais abundantes. Em certos pontos de água na zona do Planalto Superior era
possível contarem-se milhares de girinos de grandes dimensões!
As
populações da Serra têm sido desde então acompanhadas com regularidade e os
primeiros resultados foram entretanto publicados na revista Animal Conservation, ilustrando uma
perda de quase 70% da área de ocorrência da espécie, estando a sua reprodução
confinada a 16% dos locais sinalizados no passado. Este é o primeiro evento
documentado de declínio de um anfíbio em Portugal mediado por uma doença
infeciosa.
No entanto,
enquanto algumas espécies são vítimas de um declínio acentuado,
próximo de uma extinção local, outras parecem
persistir sem serem (aparentemente)
afetadas, ainda que seja possível
detectar o agente patogénico com níveis baixos de infecção. Assim, e embora não
totalmente entendida razão, a susceptibilidade dos hospedeiro é altamente variável
entre espécies mas também dentro da mesma espécie.
Gonçalo M. Rosa durante o trabalho de campo, a recolher uma amostra de água de um charco na Serra da Estrela. |
A&R de Portugal - Em suma, que riscos correm as nossas espécies?
Gonçalo M. Rosa - Os anfíbios desempenham um
papel essencial no ecossistema,
posicionando-se no meio da cadeia alimentar. Milhares de
girinos invernantes, de grandes dimensões, num charco ou numa ribeira,
representam uma parte considerável da
biomassa e são um recurso nutricional para um elevado
número de espécies, desde invertebrados a serpentes e aves.
Estes
novos dados colocam as populações de anfíbios de altitude, em particular o
sapo-parteiro-comum, em estado crítico.
Dada a semelhança deste caso com o cenário na serra de Guadarrama, prevê-se que nas zonas mais
altas da Estrela, a população possa sofrer uma redução ainda maior. O acompanhamento
e monitorização destas populações é essencial para a sua conservação, gerando um
conhecimento mais aprofundado da dinâmica e evolução das doenças e a forma
diferencial como afetam as espécies, permitindo assim ações de mitigação mais
eficazes.
Lidar com a crise
que este frágil grupo enfrenta representa um desafio crucial
para os gestores da vida selvagem,
e levanta uma necessidade urgente de otimização
das estratégias de conservação. Para além da componente de investigação a ser levada a cabo *, é essencial
uma boa comunicação entre as partes envolvidas na conservação, bem como uma boa
divulgação e sensibilização junto das pessoas, para que a falta de conhecimento
não seja desculpa para a perda da nossa incrível biodiversidade.
Tritão-marmorado (Triturus marmoratus) infectado com Ranavirus. (Gonçalo M. Rosa) |
* caso o leitor se venha a cruzar com um cenário de mortalidade massiva nos seus passeios pela Natureza, incentivo a que faça uma boa reportagem fotográfica e me contacte de imediato (goncalo.m.rosa@gmail.com).